Ricardo Braz Frade
Ricardo Braz Frade
15 Fev, 2018 - 17:14

Entrudo: o primeiro adeus ao Inverno

Ricardo Braz Frade

Quarenta e sete dias antes da Páscoa, nas aldeias serranas e xistosas de Góis, a tradição voltou a ser o que era: o Entrudo renasceu para, todos os anos, festejar o primeiro vislumbre da Primavera.

Entrudo: o primeiro adeus ao Inverno

Infelizmente, por razões difíceis de explicar, uma boa parte de Portugal esqueceu o significado do seu Entrudo.

O Carnaval, que é sobretudo uma celebração do regresso à fecundidade da natureza e aos primeiros sinais de vida depois de meses de terra morta, sacrificada pelo inverno, tornou-se, em alguns pontos do país, uma revivência barata da sua versão brasileira – mais ainda quando totalmente descontextualizado da própria realidade meteorológica (fará algum sentido ver mulheres a bailarem samba como cariocas, praticamente despidas, estando nós com temperaturas quase negativas?).

A boa notícia é que há resistentes, como aqui acontece nas Aldeias do Xisto do concelho de Góis, que merecem ser duplamente felicitados por terem puxado um costume das profundezas da memória beirã, tornando-o já uma referência do Carnaval genuíno e simbolicamente representativo do que é o Entrudo português.

E o que é o Entrudo português? É uma festa da transgressão, do excesso, onde o folião (isto é, o mascarado) tem cheque branco para fazer o que entender.

A Serra da Lousã serve assim de palco a uma festa arcaica, livre de importações desconectas da realidade lusa, espiritualmente rica e vivida num cenário que nenhuma cenografia de bom gosto recusaria.

A “Corrida do Entrudo”

É domingo em Aigra Nova. Nas primeiras horas de luz que o dia dá, gente da terra prepara os fatos.

Roupa velha, trapos, indumentária de pouco uso, tudo serve para vestir os foliões – espécie de caretos beirões, mafarricos que se ocuparão das tropelias do dia.

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Contudo, não querendo menorizar o traje que cobrirá o corpo, a nossa atenção vai toda para a máscara que tornará cada um destes rapazes e raparigas um diabo incógnito. É feita de um pedaço de cortiça, retirado dos nós do sobreiro e trabalhado por artesão de mão talentosa, dando a cada molde um aspecto demoníaco, conivente com todas as diabruras que irão, por direito, cometer.

A escolha da cortiça tem, também, um significado especial. Tal como o Entrudo festeja a renovação da natureza, o sobreiro é a árvore que regenera a sua casca, uma fénix da flora lusa. O Carnaval é isto porque não pode ser outra coisa: uma ode à terra-mãe que a partir desse momento dá sinais de querer regressar ao seu fulgor.

O roteiro está mapeado: Aigra Nova, seguindo-se a Pena, Cerdeira e Ponte do Sótão. No fim, retorna-se a Aigra Nova, ponto de partida e de chegada, onde há comezaina à espera. Pelo meio, as diabruras.

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Primeira vítima, a Pena. Uma candura perdida na Serra da Lousã, dominada pelo castanho outonal do xisto, que ganha uma dimensão mítica quando envolvida num manto de nébula invernosa e matinal. Os foliões começam a caminhada na zona mais baixa da aldeia. Ladeira acima, vão desarrumando tudo o que encontram. Lá no alto, pega-se numa caixa beirã e numa concertina e tocam folclore a eito. São entoadas quadras de escárnio e maldizer – tudo brincadeira, mas com fundo de verdade. Volta-se à base e pé na tábua até Cerdeira.

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Cerdeira perde em beleza na mesma medida que ganha em simpatia. O casario já pode ser branco, pintado por cima de cimento. Há casas de porta aberta que não se importam com a terna malvadez dos foliões. Remexem-se caixotes do lixo, trocam-se vasos do sítio, colocam-se banheiras na rua e fazem-se delas carrinhos de mão. O povo não se importa. Até agradece: com bolos e vinho a jarro, em abundância. E com canto e bailarico na praça. Em descanso, vai a comitiva aquecendo-se com uma garrafa de Favaios, partilhada por todos numa caneca em inox.

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Fazemo-nos novamente à estrada. Última paragem, Ponte de Sótão. Há uma pequena estadia na taberna lá do burgo – brinca-se mais uma vez com poesia popular, onde se aproveita para pôr na ordem alguns compadres locais. O tasco é deixado do avesso, e os foliões entregam-se de corpo e alma à sua principal tarefa: revirar a povoação como se um tornado lá tivesse passado. Invadem casas, saltam muros, atiram molhos de alecrim a quem assiste. São as últimas trapaças antes da almoçarada.

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No fim, regressa-se à casa zero, Aigra Nova. Está agora mais cheia do que pela manhã. Os foliões tiram as suas cortiças do rosto deixando um rasto de saudável destruição por onde poisaram pé. Um valente viva a tão harmonioso caos.

Para o ano, com certeza, há mais. E eu lá estarei.

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