Isadora Freitas
Isadora Freitas
08 Mar, 2018 - 12:01

Postais do Camboja: pequenas coisas que formam montanhas

Isadora Freitas

O Camboja não é somente um país de cenários idílicos e pessoas de coração no lugar certo. Ou o seu oposto. É um lugar-livro, com várias páginas e histórias.

Postais do Camboja: pequenas coisas que formam montanhas

Querida C.,

escrevo-te em jeito de desabafo sobre um tema que sabes ser muito importante para mim (não fossem os ecopontos um must-have na Casa Fantástica que partilhámos na Invicta).

No México, quando participei numa formação sobre empreendedorismo, tive a oportunidade de me cruzar com uma TED Talk da escritora Nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, que alerta para os perigos de uma só história. De generalizações, de estereótipos, de fazer de uma história a única história. Perigos que se estendem a todos os seres que habitam este planeta e a todos os lugares que nele se encontram.

O Camboja é um país com uma vasta História e várias histórias – algumas já contadas, muitas ainda por contar. Histórias de sofrimento, privação e, inevitavelmente, superação e sorrisos despidos de timidez. É um país de infinitas possibilidades enterradas num Passado recheado de dor e outras tantas cultivadas na esperança de um Futuro mais feliz.

Quem sabe como seria o Camboja hoje se a tirania de Pol Pot não tivesse destruído tanto do que fora já construído? Se a educação não tivesse sido vista como uma ameaça ou usada somente para o terror? Ninguém. Ninguém sabe. Hoje, o Camboja é um país onde a a palavra “desigualdade” teima em encontrar-nos a cada passo, esquina, cara. É, porém, um país onde há quem não tenha baixado os braços (ou o espírito). Onde há quem procure transformar os rostos cansados (ainda que sorridentes) de quem trabalha, nos campos ou nas ruas da cidade, em rostos de esperança e felicidade.

É um caminho árduo que começa nas pequenas coisas ou em coisas que parecem pequenas e, na verdade, formam imensas montanhas de importância. Como atirar uma lata para o chão.

Por vezes, confesso, é devastador. A poluição nas ruas, a poluição nas praias, a poluição que faz com o que o copo meio cheio (ou, até, cheio até cima) vire meio vazio (ou vazio por completo). A pobre gestão de resíduos, a queima de resíduos, a carência de educação ambiental, são problemas gritantes (ensurdecedores, até). É d-e-v-a-s-t-a-d-o-r. Ou de-vas-ta-dor. Com todas as letras, com todas as sílabas. Com toda a melancolia e frustração da palavra.

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Mas, como todas as histórias, esta tem mais do que uma página. Há quem tenha abraçado o desafio de acrescentar a este conto pontos – perspectiva – e criar uma consciência ambiental comum.

Num Domingo de muito sol em Janeiro, rumei, de mota, até ao The Republic, o café no outro lado do rio que acolhia, nesse dia, uma feira comunitária ecológica, organizada pela Plastic Free Cambodia e a Rehash Trash. Ali, em pequenas mesas, aninhavam-se ideias, peças originais criadas com materiais a que foi dada uma segunda oportunidade – útil, sustentável.

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Conheci Kanha, uma jovem sorridente sentada atrás de uma pequena banca da Ashi, repleta de produtos feitos com a fibra do tronco da bananeira. Visitei o espaço reservado para a Very Berry, espreitei os conjuntos de talheres da Plastic Free  Cambodia, elogiei os produtos da Siam Eco Pack, que oferece alternativas diversas às embalagens de plástico.

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Mais importante: ali, naquele pequeno jardim onde se amontoavam corações genuínos e ideias pintadas de verde, encontrei forma de desconstruir a palavra “devastador”. Tirei-lhe o “de”, porque quero concentrar-me no “para”, e apaguei a “dor”, porque prefiro focar-me na “perseverança”. Fiquei com “vasta”, à qual acrescento “esperança”. Era um jardim pequeno, é certo, e o Camboja é um país com mais de 15 milhões de habitantes, mas, nas palavras de Afonso Cruz, “a realidade tem rodas quadradas” que só o sonho pode tornar redondas.

Fui para casa a borbotar pensamentos e, uns dias depois, pus-me a lixar as arestas. Comprei um frasco de vidro e um pequeno recipiente que levo agora, religiosamente, na mochila para batidos de fruta ou noodles sem oceanos de plástico no horizonte. Disse adeus aos vegetais embalados e um olá feliz aos vendedores no mercado. Eu digo no bag e eles um aw-koon sincero. Pequenas coisas. Pequenas coisas que formam montanhas.

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Espero-te bem, amiga, e prometo estar para breve um reencontro na varanda que também é tua, com o mar a sussurar-nos ao ouvido e uma chávena de chá de cumplicidade.

Um até já, com Saudade.

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