Isadora Freitas
Isadora Freitas
05 Fev, 2018 - 12:18

Postais do Camboja: um passeio por ruas de inspiração

Isadora Freitas

Para escalar montanhas, é preciso levar na mochila inspiração. Histórias de canetas seguradas com confiança, árvores de fruto e, claro, humanidade.

Postais do Camboja: um passeio por ruas de inspiração

Queridas S., C. e J.,

Minhas pessoas com M maiúsculo, escrevo-vos o primeiro postal de 2018: um devaneio por entre as histórias bonitas de mulheres que, de formas diferentes, fazem de Siem Reap um lugar mágico.

Tal como uma das minhas personagens favoritas da literatura, “adoro começos”. Adoro ter a desculpa (que é isso mesmo, uma desculpa) de dia 1 para poder reinventar-me e procurar fazer mais e melhor.

É difícil imaginar um ano mais preenchido do que o de 2017. Chamar-lhe-ia, se escrevesse um livro sobre ele, o “ano das montanhas”, porque sinto ter escalado várias e coleccionado outras tantas – físicas e metafísicas –, que guardo agora na gaveta do Passado Feliz. Também em 2018 quero poder fazer-me às alturas; encontrar novas percepções do Mundo e trazê-las comigo na mochila. Sei que, para uma viagem assim, é necessário um só mantimento: inspiração.

O Universo tem-me feito perceber que, em todos os cantos do Mundo, há pessoas que passam por nós feitas estrelas cadentes ou aviões, deixando uma espécie de rastro frágil mas feliz. Siem Reap não é excepção. Aqui, vagueei com algumas dessas pessoas pelas suas – distintas – ruas da Memória.

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Seah, de 33 anos, passa todas as suas tardes na escola de costura do projecto Inspire, onde, mais do que camisas, se costuram vidas. Chega de bicicleta, com o cabelo apanhado e um sorriso inocente, e, quando soam as três badaladas, senta-se, com entusiasmo, na cadeira junto à janela para mais uma aula de Inglês. Escreve tudo o que se diz e, por baixo, rabisca caracteres em Khmer para, mais tarde, saber como ler as palavras de além-mar. Quando não percebe, pergunta, insiste, ri-se por entre os erros que, por vezes, comete.

Tem uma força especial, Seah. Pedi-lhe que se sentasse comigo para me contar a sua história – a sua Lenda Pessoal. Numa cadeira de jardim, sob o sol de uma sexta-feira, falou-me dos seus pais agricultores, das suas duas irmãs e do sítio onde cresceu e ainda vive – uma aldeia com pouco mais de 200 famílias não muito longe da cidade. Riu-se quando lhe perguntei o quão importante é para si a família. Riu-se e não foram precisas palavras. Quis dizer que família é sinónimo de tudo, a primeira preocupação ao abrir os olhos para o Mundo de manhã e a última a percorrer os corredores do coração ao adormecer.

Como tantas outras mulheres no Camboja, Seah nunca teve a oportunidade de se dedicar aos livros. Três meses – três fugazes meses – foi o tempo que pode passar na escola, esse edifício tão maior do que as suas quatro paredes. Hoje, segura a caneta com confiança e uma alegria difícil de explicar. Tem, agora, sonhos. Ter uma máquina de costura sua e tornar-se costureira. Ver crescer a sua pequena de seis anos com a educação de que foi privada. Vê-la voar voos maiores, escrever o seu próprio destino (que não tem por que ser escrito ao nascermos).

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Kanha, de 19 anos, senta-se a duas cadeiras de distância de Seah nas aulas de Inglês da escola de costura. É a mais jovem do grupo e a que mais participa, sem medo ou timidez.

Perguntei-lhe, nessa mesma sexta-feira, como gostaria que crescesse a sua filha (hipotética, ainda). Respondeu, a sorrir, que quer apenas que vá à escola. “Quero que seja inteligente, ao contrário de mim”. Não consegui conter a montanha de emoções erguida (e possante) nos confins do meu ser. Respondi, mais depressa do que achei ser possível, que também ela é inteligente. Kanha é uma criança-Mulher que, não fossem as condições impostas por este Mundo-armadilha, seria capaz de tudo. De qualquer coisa. Com o sétimo ano de escola, quer agora ser costureira. Acredito que será mais do que isso – que será embaixadora de segundas oportunidades e um exemplo de superação.

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Maly, a mulher por trás do projecto Inspire e de tantos outros projectos que têm vindo a transformar as vidas e percepções de dezenas e dezenas de pessoas em terras Khmer, é uma pessoa-Sol. São poucos os que, no Camboja, nunca ouviram o seu nome ou contos sobre a sua força e visão. Fala de sonhos como quem fala de afazeres domésticos – de algo tangível, palpável, real. E não se limita a falar.

São já tantas as histórias de sucesso que traz na sua pequena bolsa cinzenta (sem fundo, será?) que a palavra “impossível” parece ter desaparecido do seu dicionário, como se exposta ao sol demasiado tempo. Junto às plantas, na varanda do escritório da Rachna Satrei, a organização que fundou e gere, disse-me, há pouco tempo, que lutar pela igualdade de género “é como fazer crescer uma árvore, não como cozinhar arroz. Tudo acontece pouco a pouco”. E aqui está ela, de regador numa mão e tesoura de podar na outra, de espírito paciente e coração no lugar certo, sempre perto do rebento que – acredito – se vai transformar numa magnífica árvore de fruto.

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Não longe do burburinho da Pub Street e do Old Market, numa ruela que o sol da tarde ilumina, existe um pequeno café onde os preços não existem e em que as paredes segredam as histórias de quem já por ali passou. Chama-se Fat Panda’s e é um projecto da Bamboo, uma empresa que combina turismo de aventura com projectos de voluntariado.

Sentada numa das pequenas mesas junto à parede, Kristin Schuster, Social Impact Manager, falou-me do conceito de impacto positivo e do mote de “dar algo em troca à comunidade”. Quando perguntei o porquê de abrir um café assim em Siem Reap, respondeu algo que me fez sorrir como quem teria escolhido as mesmas palavras: “há algo de mágico na cidade. Ver a força que move os locais e a vontade que têm de transformar as suas vidas é verdadeiramente extraordinário”.

Com um menu pay what you want, 100% dos lucros deste Panda, não só gordo mas generoso, reverte para o chamado ‘projecto do mês’, abraçado já por várias organizações e instituições de áreas distintas, como o Angkor Hospital for Children, a Safe Waters e, também, a Rachna Satrei. É um sítio que acredita no melhor dos seres humanos e o partilha com quem mais precisa dessa mensagem de Humanidade.

Sinto-me pequena no meio de tudo isto. Sinto-me parte de algo maior. Algo de que vocês fazem parte também: esta busca incessante por uma Humanidade comum.

Espero-vos bem, cheias de luz, como sempre vos encontrei e, cada uma ao seu jeito, a contagiar todos os que se cruzam convosco. Tenho saudades vossas, nossas e dos nossos pequenos devaneios tugas, que sempre me fizeram sentir em casa.

Um imenso sorriso para vocês, com todo o sol que por aqui brilha.

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