Gabriela Caçador
Gabriela Caçador
05 Abr, 2022 - 18:34

Entrevista. À mesa deve falar-se de tudo, menos de comida

Gabriela Caçador

Entrevista com Carla Rêgo, responsável pela criação da primeira consulta de obesidade infantil.

Carla Rêgo, especialista em obesidade infantil

A obesidade infantil é uma doença crónica, com sérias implicações na saúde das crianças. Em Portugal, trata-se de um problema real e que afecta cerca de 30% das crianças, seja em termos de excesso de peso, seja numa fase mais avançada, com a obesidade.

Sobre este tema, fomos falar com a pediatra do Hospital CUF, Carla Rêgo, responsável pela criação da primeira consulta em obesidade pediátrica em Portugal, no Hospital de São João, no Porto, e presidente do GNEIOP – Grupo Nacional de Estudo e Investigação em Obesidade Pediátrica.

A também professora da Faculdade de Medicina do Porto e da Universidade Católica, explica como podemos adotar comportamentos alimentares mais saudáveis ou por que motivo devemos eliminar alimentos como as bolachas e cereais do pequeno-almoço.

O desafio de adotar hábitos alimentares mais saudáveis

Ekonomista: O consumo exagerado de açúcar e sal faz parte da rotina alimentar de muitas crianças. Quais as consequências disto?

Carla Rêgo: O sal e o açúcar são dois aditivos e, portanto, não fazem parte da composição natural dos alimentos. Tudo o que é adicionado, à partida, não faz falta ao organismo humano. Atualmente, sabe-se que o sal e o açúcar têm consequências graves para a saúde e a obesidade infantil é um problema concreto.

O açúcar, ao condicionar uma dieta com maior teor de glicose pode levar à obesidade e depois à diabetes e o sal tem influência a nível das artérias e pode resultar em hipertensão arterial. No primeiro ano de vida da criança, o açúcar e o sal não devem fazer parte da alimentação, porque tem efeitos negativos graves no desenvolvimento de órgãos e sistemas, com repercussões para a saúde.

A partir do primeiro ano de vida, a criança é integrada na dieta familiar e, é evidente, que a partir dessa altura, a família grande parte das vezes consome açúcar e sal. No entanto, o acesso a estes dois aditivos deve ser o mais tarde possível, o mínimo possível e apenas em ocasiões especiais.

EK: Pode dar-nos algumas dicas para adotar hábitos alimentares saudáveis em 2020?

CR: É importante comer variado. Não deve haver exclusão de nenhum tipo de alimento, pois quanto maior o número de alimentos excluídos da alimentação de uma criança, maiores os déficits nutricionais que essa criança tem, com repercussões no crescimento, imunidade e no desenvolvimento.

Uma alimentação saudável pressupõe a água como única bebida. Os lácteos devem rondar os 300/400 mililitros por dia. O que significa que para termos cumpridas as necessidades em cálcio, basta beber, ou comer, duas a três vezes ao dia, um iogurte, ou um copo de leite de 125 mililitros, ou uma fatia de queijo. Os lácteos são a fonte mais eficaz de nos fornecer cálcio. Para ir buscar aos vegetais o cálcio compreendido num iogurte, é necessário ingerir 800 gramas de brócolos.

As bolachas e os cereais de pequeno-almoço são alimentos processados com quantidades brutais de açúcar ou de sal

Para além disso, uma alimentação saudável pressupõe duas a três peças variadas de fruta, por dia, da época preferencialmente. Os legumes e vegetais devem constar das duas refeições principais. A carne deve ser consumida quatro vezes por semana, o peixe três e o ovo duas a três vezes por semana.

É importante evitar a adição de açúcar e sal na dieta diária. Evitar alimentos processados e lembro que as bolachas e os cereais de pequeno-almoço são alimentos processados com quantidades brutais de açúcar ou de sal, quantidades grandes de químicos, que se sabe podem interferir na nossa parte hormonal e originar doenças como a obesidade infantil.

EK: Em Portugal, o excesso de peso mais obesidade é de cerca de 30%, em crianças dos 12 meses aos 15 anos de idade. A que se devem estes números?

CR: Nos últimos anos, houve uma grande mudança nos comportamentos sociais, devido à globalização, ao boom da indústria alimentar e depois ainda com as mudanças do tecido familiar, em que a mulher passou a sair de casa e o tempo para a confeção culinária diminuiu.

A acessibilidade a alimentos pré-confecionados, como enlatados e conservados, acabou por ser muito fácil, a oferta foi muito grande e o comodismo acomodou-se do agregado familiar. E foi um comodismo que foi associado a um desconhecimento das consequências do consumo abusivo deste tipo de alimentos.

Para além disso, somos dos povos mais baixos da Europa e após a última guerra mundial fomos o povo que teve, provavelmente, o maior incremento da qualidade de vida.

Ou seja, uma genética mais baixa, associada a uma maior qualidade de vida, e ao acesso fácil a alimentos, resultou num aumento mais rápido da prevalência de um excesso de peso e da obesidade, designadamente da obesidade infantil..

EK: Quais são os períodos de maior risco de obesidade infantil?

CR: O primeiro período de risco de obesidade é o de vida intrauterina. O segundo, são os primeiros dois anos de vida do bebé, porque é um período de elevada velocidade de crescimento. Esta fase é fundamental para modelar comportamentos e para modelar padrões de crescimento.

O terceiro período de risco é entre os cinco e os sete anos, que é o chamado período do ressalto adipocitário, que é quando o corpo muda. Em que na menina começa a aumentar o tecido adiposo e no rapaz começa a aumentar o tecido muscular. Quando tudo isto começa antes dos cinco e dos sete anos, o risco de obesidade é maior.

E, por último, o quarto período, a adolescência. Cada etapa destas que se ultrapasse com excesso de peso ou obesidade, é uma batalha perdida. E se a criança entra na idade do ressalto adipocitário com excesso de peso, ou obesidade, só tem metade das hipóteses, na vida adulta, de ser adequadamente nutrida, ou seja, tem metade das hipóteses de se manter obesa.

E se chega à adolescência com excesso de peso e obesidade, só tem 10% de hipóteses de ser adequadamente nutrida e tem 90% de hipóteses de se manter obesa.

Cada etapa perdida no controle do estado nutricional, é o caminho para a obesidade na idade adulta.

O tablet não deve constar das nossas ferramentas diárias para lidar com uma criança e nunca deve ser uma ferramenta utilizada numa refeição.

EK: O uso do telemóvel ou tablet à mesa, na hora das refeições, prejudica apenas o diálogo familiar ou tem também influência na forma como comemos?

CR: O ato de comer tem várias fases: cheirar, olhar, paladar e saciedade. E estas fases pressupõem um ambiente calmo, de contacto e empatia com o alimento. A cada uma destas fases está associada a libertação de neurotransmissores, com ponto de partida nos órgãos dos sentidos e no tubo digestivo que vão ser responsáveis pela libertação, inclusive de uma serie de hormonas que regulam a saciedade e a fome.

Quando uma criança está agarrada a um ecrã ou a fazer qualquer outra coisa que desvie o seu foco do ato de comer, o que acontece é que ela bloqueia todos estes sistemas de controle de fome e de saciedade. Não só perde fases cruciais da alimentação, que é o olhar, o cheirar e a perceção do paladar, como perde a fase do controle da saciedade.

O tablet deve ser rapidamente banido da prática diária de qualquer família que tem crianças. O seu uso está associado ao compromisso intelectual, imaginário, visual e perturbações do sono. O tablet não deve constar das nossas ferramentas diárias para lidar com uma criança e nunca deve ser uma ferramenta utilizada numa refeição.

EK: E quando a comida é usada como recompensa? Quando se ouve, por exemplo, frases como: “se te portares bem dou-te uma guloseima…”

CR: Compete-nos a nós cuidadores e educadores pôr à frente da criança, em cada refeição, o alimento que ela deve comer e compete à criança gerir o que ela quer comer.

O alimento não deve ser usado para prometer, recompensar, sossegar. É muito frequente observar pais que quando a criança chora, ou quando a criança está irritada, dizem: “toma lá uma bolacha”.

Os primeiros anos de vida são anos de programação, por isso, se nós ensinamos uma criança a obter consolo através do alimento, ela vai estruturar para a vida um comportamento em que qualquer situação de frustração futura, ela só vai conseguir encontrar calma, conforto e sossego, comendo.

O alimento deve ser oferecido no ambiente e no momento adequado. E deve ser interpretado, desde cedo, pela criança como uma forma de sobrevivência. Tudo o que extravasa essa aplicação do alimento é perverso em termos educativos e é perverso em termos de estruturação comportamental. É uma solução fácil, no momento, para os educadores, mas é a fatura para o resto da vida que aquela criança vai pagar.

Criança que sofre de obesidade

EK: Como agir quando a criança não gosta de alguns alimentos ou quando ingere poucos alimentos de um determinado grupo alimentar?

CR: Uma criança que é habituada, desde cedo, quando se inicia a diversificação alimentar, algures entre o quinto e sexto mês de vida, a ir progressivamente contactando com tudo, teoricamente aceitará tudo.

É importante fazer este treino, é uma janela de oportunidade para treinar texturas e paladares e que vão garantir, um pouco, a aceitação futura. Depois, há fases do crescimento e do desenvolvimento que cursam com algumas perturbações em termos do comportamento alimentar, nomeadamente comportamentos da neofobia ou de rejeição de algum tipo de alimentos.

A partir dos 18 meses, essa fase acontece em quase todas as crianças. Nessa altura, deixam de gostar de comer a sopa ou a fruta, mas na maioria das crianças é uma fase transitória e ténue.

EK: Nessas ocasiões e nessas crianças o que é que devemos fazer?

CR: Continuar a ir oferecendo tudo. Insistir, mas na dinâmica e na rotina da alimentação da família. Ou seja, quando a família se senta à mesa, o prato da sopa e da comida é posto na mesa para todos e a fruta também é para todos.

Mesmo os alimentos que a criança diz, à partida, que não gosta de comer são para pôr no prato e vai-se conversando de tudo e, de vez em quando, vai-se perguntando “então não queres provar a ervilha?”. Pergunta-se uma vez, porque o maior massacre que pode haver, quando uma criança rejeita qualquer coisa, é estar sistematicamente a falar nisso. À mesa deve falar-se de tudo menos de comida.

EK: É importante treinar o paladar da criança?

CR: Quanto mais tarde se fizer contactar uma criança com açúcar ou com sal melhor, porque o paladar treina-se no primeiro e segundo ano de vida, e estabiliza por volta dos três anos de idade.

É muito importante treinar o paladar da criança, pois quanto menor for o contacto com o sal e o açúcar, menor será a procura de alimentos doces e salgados para o resto da vida. E isso é fundamental no combate à obesidade infantil.

Nascemos com o sabor doce geneticamente programado. Temos uma apetência grande para aceitar o sabor doce, pois está associado a prazer e a energia. O paladar salgado, amargo e ácido, por sua vez, é algo que se treina. E o primeiro ano de vida é uma fase crucial para treinar paladares e texturas.

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