Share the post "Queima do Velho: queimar o ano que finda e seguir em frente"
Quem nunca disse, ou ouviu dizer, que “este ano já deu o que tinha a dar”? É sinal de que vem uma nova era e é preciso olhar com esperança para o futuro. E uma das tradições ancestrais para isso é a Queima do Velho.
Esta é uma prática antiga. Muito antiga. Tão antiga que ninguém consegue apontar uma data concreta para o seu nascimento. O que se sabe é que antecede programas oficiais de réveillon, fogos de artifício coreografados e discursos institucionais.
Nasceu no mundo rural, onde o ano não era apenas uma sequência de meses, mas um ciclo duro, físico, por vezes ingrato.
O Velho, esse boneco tosco e quase sempre desengonçado, simboliza o ano que termina. Mas não só. Carrega em cima dele tudo o que correu mal. As perdas. As zangas. As doenças. As promessas que ficaram pelo caminho. É uma espécie de saco emocional coletivo. E no fim queima-se.
Queima do Velho: marco em Moimenta da Beira
Ainda hoje, a tradição mantém-se viva em várias aldeias portuguesas, sobretudo no interior centro e norte do país, onde o calendário cultural continua a ser marcado por rituais comunitários e não apenas por eventos de cartaz.
Uma das mais marcantes é em Moimenta da Beira. Tudo principia quando o povo começa a abeirar-se e a juntar-se na Portelinha, no Arrabalde da vila, por voltas das 23h00.
É a essa hora que o séquito inicia o percurso, incorporando homens que carregam à mão gigantes luminárias de palha a arder e a largar línguas de lume.
O esquife com o velho, acabado, moribundo e em agonia, segue no meio, com o falso padre e o falso sacristão ao lado a lançarem falta água benta para esconjurar males, exorcizar males.
Em passo apertado, as carpideiras aos gritos vão na cauda do percurso, misturadas com o povo.
Quase uma hora depois, chega-se à Fonte de S. João e espera-se pelas badaladas que hão-de soar do sino da torre da matriz. À primeira, o fogo é lançado ao velho, que em poucos minutos se reduz a cinzas, para gáudio dos populares.

Tradições noutras aldeias
Na aldeia de Pias, em Cinfães, uma tradição semelhante acontece de 31 de dezembro para 1 de janeiro, mas com o nome de Enterro do Ano Velho.
Em preparação para este ritual, a população cria o “Ano Novo”, um boneco feito de palha de centeio, que irá acompanhar o “Ano Velho”, o boneco de palha criado no ano anterior.
Escolhido um “padre” para acompanhar a cerimónia, quatro homens carregam a padiola que levará o Ano Velho, seguidos de uma viúva que irá “carpir” durante o cortejo.
A restante população, munida de tachos ou testos, irá acompanhar o cortejo, a chamar os que se encontram em casa com as famílias. Perto da meia-noite, o Ano Novo é queimado no Largo da Cruz
Não há um só formato
O que todas estas aldeias têm em comum não é o formato exato da cerimónia. É o espírito. Não há encenação profissional. Há imperfeição. Há discursos demasiado longos, piadas internas que só meia dúzia percebe, pausas estranhas, risos fora de tempo. Tudo isso faz parte. Tudo isso é humano.
A Queima do Velho tem raízes claras em rituais pagãos ligados ao solstício de inverno e à renovação dos ciclos naturais.
Mais tarde, foi absorvida pelas comunidades cristãs sem nunca perder a sua essência, fechando um ciclo de forma simbólica, visível, quase brutal. Nada de resoluções abstratas. Aqui, queima-se mesmo.
Talvez seja por isso que continua a fazer sentido. Num tempo em que tudo é digital, rápido e descartável, ainda há quem precise de um gesto físico para marcar a mudança. Um fogo real. Um boneco a arder. Um silêncio curto antes dos abraços e do barulho.
Não resolve tudo. Claro que não. Mas ajuda. E em algumas aldeias de Portugal, isso chega.