Há discussões que marcam a história da humanidade. Praia ou montanha? Benfica ou Porto? E, claro, a mais acalorada de todas nas cozinhas portuguesase se a aletria é melhor com água ou com leite?
Quem já assistiu a este debate na família durante a Consoada sabe que não há meio-termo. De um lado, os defensores ferrenhos da aletria com água, que juram que é a única forma tradicional e autêntica.
Do outro, os apaixonados pela versão com leite, cremosa e reconfortante como um abraço de avó.
Mergulhamos neste delicioso duelo e revela os segredos de cada método, os argumentos de cada “equipa” e, no final, duas receitas para experimentar em casa e tirar conclusões próprias. Aviso: isto vai dar água (ou leite) na boca!
O que é a aletria?
Antes de escolher lados nesta batalha doce, importa conhecer o básico. A aletria é uma sobremesa tradicional portuguesa, especialmente popular no Natal, feita com massa cabelo de anjo (aquelas massas finíssimas que parecem fios dourados), açúcar, ovos, canela e casca de limão.
O nome vem do árabe “itriyya”, que significa massa fina, uma herança mourisca que se incorporou perfeitamente na doçaria portuguesa. É prima-irmã do arroz doce, mas com personalidade própria e, claro, este eterno dilema: água ou leite?
Equipa água: tradição em estado puro
Os defensores da aletria com água são, tipicamente, os guardiões da tradição. Para este grupo, a receita original não leva leite, ponto final.
Argumentos a favor
- Leveza. A aletria com água é mais leve, menos enjoativa, perfeita depois de uma Consoada farta
- Sabor autêntico. Permite que o sabor dos ovos, da canela e do limão brilhem sem competição
- Digestibilidade. É mais fácil de digerir, especialmente para quem tem intolerância à lactose
- Textura delicada. A massa fica solta, com cada fio bem definido
- Tradição pura. “É assim que a bisavó fazia!”
Para os puristas, adicionar leite à aletria é quase uma heresia culinária. É como pôr ananás na pizza, só que em versão portuguesa e natalícia.
Equipa leite: a cremosidade irresistível
Do outro lado da trincheira, encontram-se os apaixonados pela aletria com leite, que consideram a versão com água demasiado simples, quase incompleta.
Argumentos a favor
- Cremosidade. A textura aveludada que só o leite consegue dar
- Sabor rico. O leite adiciona profundidade e um dulçor suave natural
- Reconfortante. Aquela sensação de comfort food que aquece a alma
- Mais nutritiva. O leite adiciona cálcio e proteínas à sobremesa
- Versatilidade. Aceita melhor variações, como leite condensado ou creme de leite
Para este grupo, a aletria com água é apenas… água. Literalmente. Falta-lhe aquele “não sei quê” que só a cremosidade do leite consegue trazer.
Chegou a hora da verdade! Experimentar ambas as versões é a única forma de decidir qual conquista o paladar.
Receita 1: Aletria tradicional com água
Ingredientes:
- 250g de massa cabelo de anjo (aletria)
- 1 litro de água
- 200g de açúcar
- 4 gemas de ovo
- Casca de 1 limão
- 1 pau de canela
- Canela em pó para polvilhar
- Pitada de sal
Modo de preparação
- Numa panela grande, colocar a água, o açúcar, a casca de limão,
o pau de canela e uma pitada de sal. Levar ao lume e deixar ferver. - Quando levantar fervura, adicionar a massa cabelo de anjo partida em pedaços médios (não é preciso partir muito pequeno). Mexer bem para não
agarrar ao fundo. - Cozinhar em lume médio durante cerca de 10-12 minutos, mexendo
regularmente, até a massa estar cozida e o líquido quase todo absorvido. A consistência deve ser ligeiramente caldosa. - Retirar do lume e remover a casca de limão e o pau de canela.
- Numa tigela pequena, bater ligeiramente as 4 gemas. Adicionar um
pouco da aletria quente às gemas (2-3 colheres), mexendo rapidamente para temperar os ovos sem os cozinhar. - Incorporar esta mistura de volta à panela, mexendo vigorosamente e constantemente durante 2-3 minutos em lume baixo, até as gemas
espessarem ligeiramente a aletria. - Despejar num prato de servir ou em taças individuais. Polvilhar
generosamente com canela em pó. - Deixar arrefecer à temperatura ambiente ou levar ao frigorífico.
Servir fria ou morna, conforme preferência.
Dica: Não deixar as gemas ferver, senão coalham! O segredo é mexer sempre.
Receita 2: Aletria cremosa com leite
Ingredientes:
- 250g de massa cabelo de anjo (aletria)
- 1 litro de leite gordo
- 200g de açúcar
- 4 gemas de ovo
- Casca de 1 limão
- 1 pau de canela
- Canela em pó para polvilhar
- 1 colher de sopa de manteiga
- Pitada de sal
Modo de preparação
- Numa panela grande e de fundo grosso (para não agarrar), aquecer
o leite com o açúcar, a casca de limão, o pau de canela e uma pitada
de sal. Levar ao lume médio até começar a ferver. - Assim que o leite levantar fervura, adicionar a massa cabelo de anjo
partida em pedaços. Baixar o lume para médio-baixo e mexer bem. - Cozinhar durante 12-15 minutos, mexendo frequentemente (o leite tem
tendência a agarrar!). A massa deve ficar macia e o leite deve ter reduzido,
criando uma consistência cremosa. - Adicionar a colher de manteiga e mexer até incorporar completamente.
Isto vai dar um brilho especial à aletria. - Retirar do lume e remover a casca de limão e o pau de canela.
- Numa tigela, bater as gemas ligeiramente. Temperar as gemas
adicionando 3-4 colheres de aletria quente, mexendo rapidamente. - Incorporar as gemas temperadas à panela, mexendo vigorosamente
em lume baixo durante 2-3 minutos. A aletria vai ficar ainda mais cremosa e aveludada. - Transferir para uma travessa ou taças individuais. Polvilhar com canela em pó, desenhando padrões bonitos para quem se sentir criativo.
- Deixar arrefecer e levar ao frigorífico por pelo menos 2 horas antes de servir.
Dica: Para uma versão extra especial, é possível substituir 200ml
do leite por natas. Fica divina
Aletria: a ciência por trás da contenda

Do ponto de vista técnico, a escolha entre água e leite afeta significativamente o resultado final.
Com água. A massa absorve menos líquido, fica mais solta e os sabores mantêm-se mais distintos. É ideal para quem prefere sobremesas menos densas.
Com leite. A gordura e as proteínas do leite criam uma emulsão cremosa que envolve cada fio de massa. O resultado é mais denso, mais rico e com maior poder saciante.
Curiosamente, há também quem faça versões híbridas, usando metade água e metade leite, numa tentativa diplomática de agradar a gregos e troianos na mesma mesa de Natal.
O veredito? Não existe!
A verdade é que não há resposta certa. A melhor aletria é aquela que sabe bem, que traz memórias felizes, que faz repetir o prato mesmo já estando cheio da ceia.
Talvez a solução seja fazer as duas versões e deixar cada um escolher. Ou talvez seja perpetuar esta discussão deliciosa que, no fundo, é parte da tradição portuguesa.
Truques profissionais para a aletria perfeita
Independentemente do lado escolhido neste duelo delicioso, há alguns segredos que funcionam para ambas as versões.
- Não esquecer as gemas. São elas que dão aquela textura sedosa característica
- Canela nunca é demais. Polvilhar generosamente, é a assinatura da aletria
- A casca de limão é essencial. Dá aquele travo fresco que equilibra o doce
- Mexer, mexer, mexer. Principalmente nos últimos minutos, para não agarrar
- Provar e ajustar. Cada pessoa tem a sua preferência de doce, ajustar o açúcar ao gosto
Qual é o lado escolhido neste duelo? Partilhe nos comentários qual é a versão favorita de aletria e qual a memória mais especial desta sobremesa natalícia.