Miguel Pinto
Miguel Pinto
01 Out, 2025 - 12:00

Do alarme à evidência: por que persistem dúvidas sobre vacinas?

Miguel Pinto

As vacinas previnem doenças que, de outra forma, poderiam causar sérios problemas de saúde. Mas a polémica sobre elas não cessa.

Há muitos, demasiados, discursos alarmistas sobre vacinas hoje em dia. Fala-se de riscos ocultos, conspirações, efeitos adversos permanentes, teorias à la “vacina causa autismo”, “vacina enfraquece o sistema imunológico”, “vacinas escondem danos”…

São afirmações que ecoam nas redes sociais com estrondo. Mas o que diz a ciência? E onde fica a linha entre dúvida legítima e desconfiança perigosamente errada?

Para começar, é fundamental afirmar que as vacinas são uma das maiores conquistas da saúde pública moderna. Graças à vacinação sistemática, doenças que já foram comuns (como a varíola) foram erradicadas, outras são hoje raras ou controladas, e milhões de mortes são evitadas todos os anos.

A eficácia vacinal é demonstrada por estudos de longo prazo, dados epidemiológicos e ensaios clínicos rigorosos.

Claro que as vacinas não são perfeitas. Nenhum medicamento ou intervenção o é. Há riscos, sim, mas esses riscos são minúsculos comparados aos benefícios, especialmente para doenças graves ou epidémicas.

O conceito de relação risco/benefício é central aqui. Na esmagadora maioria dos casos, o benefício coletivo e pessoal de estar protegido supera largamente qualquer risco raro ou efeito adverso leve.

Vacinas: desinformação e “alternativas factuais”

Hoje, grande parte da polémica em torno das vacinas não vem da ciência, mas da desinformação. Notícias falsas, mensagens alarmistas, experiências individuais generalizadas, “especialistas autoproclamados” nas redes.

Em particular durante a pandemia de COVID-19, circulou um volume massivo de relatos anti-vacina que captaram fôlego online.

Há teorias modernas como a dita “câncer turbo” (uma ideia conspirativa de que vacinados sofreriam de incidência acelerada de cancro), mas não há evidência credível que suporte isso.

Essas teorias normalmente partem de anedotas, correlações mal interpretadas ou mecanismos hipotéticos sem respaldo empírico.

O estudo “Alternative fact of probable vaccine damage” mostrou que, em sondagens europeias, há segmentos da população que combinam crença na utilidade das vacinas com medo de danos, mesmo quando a evidência científica os refuta.

O que demonstra como a hesitação vacinal pode residir numa zona cinzenta de confiança e dúvida.

O caso Wakefield e o autismo

Um dos episódios que marcou esta controvérsia foi o célebre caso Wakefield. Em 1998, Andrew Wakefield publicou um estudo na revista científica The Lancet sugerindo que a vacina tríplice viral (sarampo, papeira e rubéola/MMR) estaria associada a colite e ao autismo.

A imprensa mundial abraçou a história. O terror instalou-se. Mas a investigação aprofundada demonstrou que Wakefield manipulou dados, não revelou conflitos de interesse e, de facto, perdeu a licença médica pela prática antiética. O artigo foi retratado integralmente em 2010.

Depois desse episódio, inúmeros estudos epidemiológicos, revisões sistemáticas, organizações de saúde (como a OMS, CDC, academias de medicina) concluíram que não existe ligação causal entre vacinas e autismo.

Ainda assim, o mito permanece vivo, alimentado por narrativas emocionais, pela memória colectiva do choque e pela persistência de teorias conspirativas. Até Donald Trump abraçou a teoria, influenciado pelo seu “ministro da saúde”, Robert Kennedy Jr, um fervoroso anti-vacinas.

Benefícios claros, riscos reais, mas raros

Quando avaliamos os benefícios, falamos de prevenção de doença grave, redução da mortalidade, proteção de quem não pode vacinar (imunidade de grupo) e contenção de epidemias.

A comunidade científica atribui às vacinas um papel decisivo na redução de doenças como a poliomielite, difteria, tétano, sarampo, entre outras.

Os riscos existem, como, por exemplo, reações alérgicas graves (anafilaxia) muito raras, ou efeitos adversos leves (dor no local da injeção, febre leve, mal-estar).

Os sistemas de vigilância pós-comercialização estão precisamente pensados para monitorizar e identificar efeitos adversos inesperados.

No caso das vacinas de mRNA usadas contra a COVID-19, houve preocupação com miocardite (inflamação do músculo cardíaco), especialmente em adultos jovens. É importante reconhecer que esses casos são extremamente raros e, na maioria das vezes, leves ou moderados.

Comparado ao risco de complicações cardíacas após infecção pelo vírus, a vacinação emergiu como proteção não apenas de infecções leves, mas contra formas graves, hospitalização e morte.

Vacinas: autonomia versus bem comum

Outro nó da polémica reside no equilíbrio entre a autonomia individual (o direito de decidir o que ocorre ao próprio corpo) e o bem público (reduzir riscos coletivos, proteger populações vulneráveis).

Muitos questionam se obrigações ou programas mandatórios de vacinação violam liberdades pessoais.

É um dilema real. Mas do ponto de vista ético em saúde pública, quando um comportamento individual pode colocar em risco terceiros (por exemplo, quem não pode vacinar por razões médicas), a limitação voluntarista pode ser legítima.

A vacinação funciona não apenas como proteção individual, mas como rede de proteção coletiva e esse bem coletivo muitas vezes é invisível até que uma doença reaparece.

Além disso, há uma desigualdade global no acesso às vacinas: muitos países com menos recursos ficam dependentes de ajuda internacional (como a GAVI, a “Aliança de Vacinas”) para garantir imunização ampla. Isso levanta perguntas justas sobre justiça global, solidariedade e a responsabilidade dos países mais ricos.

Como separar o mito da evidência?

Acima de tudo é fundamental confiar em fontes credíveis (organizações de saúde como OMS, CDC, revistas médicas revisadas por pares), não basear decisões em relatos isolados, contextualizar estatísticas (por exemplo: “1 caso em 1 milhão” não é zero, mas é extraordinariamente raro), e estar atento à retórica emocional usada em membranas anticiência.

Também é útil lembrar que a ciência vacinal está viva e os estudos continuam, a vigilância continua e as melhorias nas tecnologias ocorrem. A ciência não promete perfeição imediata, mas promete revisão, autocorreção e transparência.

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