Miguel Pinto
Miguel Pinto
20 Nov, 2020 - 16:46

Amália Rodrigues, ditadura e revolução: tudo isto é fado?

Miguel Pinto

Amália não é só o nome maior do fado. É uma personagem fascinante, com um legado que atravessa uma ditadura, uma revolução e uma imberbe democracia.

Amália Rodrigues a cantar

Foi por vontade de Deus, com toda a certeza, que o homem não faz uma voz assim. Amália Rodrigues arrancou o fado das entranhas das vielas lisboetas e, longe de faias e mulheres de vida duvidosa, elevou-o à categoria de arte absoluta.

Mas para lá de uma voz esplendorosa, Amália é também um enigma, uma mulher que atravessou regimes, ditadores e democratas, uma estranha forma de vida que lhe causaria dissabores na mesma proporção com que arrebatou salas e plateias pelo mundo fora. Viveu amores e desamores, foi acusada de tudo e do seu contrário, mas acima de tudo cantou. E o seu canto sempre foi tão poderoso como a gaivota que voava livremente nos versos que interpretava.

Só que Amália é também um mistério. O jornalista Miguel Carvalho meteu mãos à obra para resolver alguns enigmas que ainda permanecem. O resultado é o livro “Amália, Ditadura e Revolução”, onde emerge uma personagem que esteve décadas na mira do povo, mas que, afinal, pouca gente conheceu.

Amália: difícil de catalogar

Amália numa manifestação

“Geralmente fecha-se a Amália em gavetas e acaba por perder-se a noção do todo”, explica Miguel Carvalho em entrevista ao Ekonomista, frisando que “não é nada fácil tirar da cabeça das pessoas a imagem que há muito têm da Amália, muito por causa de algumas trincheiras ideológicas que aqui e ali vão persistindo”.

Para o autor, a democracia “tratou-a mal”, a que não será alheia a ideia propagandeada após o 25 de Abril de 1974 de que a fadista era um dos símbolos do regime deposto. Até lhe chegaram a chamar a Princesa da PIDE, a polícia política do Estado Novo.

No entanto, Amália tinha um dossiê na PIDE, onde estava conotada com grupos do reviralho anti-salazarista, e até há bem pouco tempo ninguém sabia que tinha contribuído com dinheiro para o apoio a famílias de presos políticos e até para o próprio PCP. Daí que seja difícil colocar Amália numa das tais gavetas. Nada é apenas preto e branco quando se conta a história desta cantadeira.

Consciência política?

“Amália Rodrigues não tem consciência política alguma. É capaz de gestos de grande humanidade, como a assistência discreta a famílias de presos políticos, e se não é uma lutadora da liberdade, também não encontrei nenhuma prova contundente de que tenha sido consciente qualquer ligação, ou devoção, ao salazarismo”, salienta Miguel Carvalho, para quem a fadista é tudo menos desprovida de discernimento. “Ela sabe muito bem o que faz e para quem faz, tendo a perfeita noção de que tem que sobreviver numa fronteira muito ténue”.

Aliás, o fado enquanto expressão da canção nacional, o que quer que isso seja, é muito mais recente do que se pensa. Salazar não gostava (chegou a referir a Amália como “a criaturinha”), mas o ditador não estava rodeado apenas de yes man. António Ferro, um intelectual que moldou toda a propaganda do Estado Novo, percebeu o potencial que ali estava e não poupou esforços. Por isso, como refere Miguel Carvalho, “o fado só entra nas contas do regime a seguir à II Grande Guerra”, precisamente quando vê o chão a fugir-lhe dos pés, fruto dos ventos de mudança que assolavam a Europa.

Colar Amália ao antigo regime é, assim, pouco feliz, para não dizer pouco sério. A verdade é que os anos de maior vitalidade artística, onde a sua monumental voz atinge os píncaros e onde canta poetas impensáveis no fado, coincidem com os anos da treva salazarista. E quanto a isso há muito pouco a fazer.

O mito da nova Amália

Com punhos de renda, Amália traçou as fronteiras do fado e houve quem nunca lhe perdoasse a ousadia, muito menos o génio. “A Amália era odiada no meio do fado, ninguém gostava dela. Hoje vamos a qualquer boteco onde se ouve fado e quase que têm altares dela, mas isso é folclore para inglês ver”, diz Miguel Carvalho, para quem ela é de longe a voz que leva o fado mais longe: “O fado vai sempre atrás dela, é ela que define os caminhos. Quem é a nova Amália? Ainda hoje é a própria Amália. Basta ouvir os registos inéditos que têm vindo a ser recuperados para perceber que aquilo ainda é inultrapassável”.

Inultrapassável parecia ser o ostracismo que a democracia destinava à artista. O que alguns “democratas” não contavam era com uma tribo urbana, que cedo percebeu o que Amália representava. Miguel Esteves Cardoso proclamava que ouvir Amália e Lou Reed era perfeitamente compatível. António Variações cantava que ela era a voz de todos nós. Rão Kyao fazia um fado bailado com os temas da fadista e conquistava o país. E, como se não bastasse, o grande abalo veio do outro lado do Atlântico.

Num concerto em Portugal, Caetano Veloso decide, para espanto de muitos, cantar Amália, que comparece a um dos espetáculos. Sobe ao palco e perante a reverência do músico brasileiro inicia um percurso de normalização da sua relação com o país e com o público português.

Reconhecimento e mágoa

No entender de Miguel Carvalho, “a democracia reconhece-lhe valor, se assim se pode dizer, dez anos antes da sua morte”, explicando que isso se deve não só à força da sua obra, mas também ao reconhecimento político, mesmo de figuras duras de ouvido, como Mário Soares, por exemplo.

Amália nunca cedeu à tentação de dizer o que fez clandestinamente, quem ajudou e que forma o fez, lembra Miguel Carvalho. Teria sido meio salvo-conduto para o país se reconciliar com a sua voz. Não morreu em paz com o que sofreu no pós-revolução. Ficou o pico no peito de uma injustiça que se prolongou por demasiado tempo.

Amália, Ditadura e Revolução

Nota prévia: este livro não é uma biografia tradicional, muito menos uma ficção sobre a vida e obra da mais emblemática fadista portuguesa. É uma investigação jornalística, assente numa avalanche de documentação e, sempre que possível, com a voz dos protagonistas de uma história fascinante.

Acima de tudo, esta obra mostra Amália como uma mulher complexa, que caminhou quase toda a sua vida sobre gelo fino. Ao longo que quase 600 páginas, Miguel Carvalho traça o retrato de uma sobrevivente, de alguém que viveu intensamente a sua arte, que pagou em público o preço de querer ser livre, um preço parecido ao que pagou em privado pela liberdade de alguns.

Lê-se de um fôlego e para além de um trabalho jornalístico de excepção é, podemos dizer, um serviço público. Porque muitas vezes a memória é mesmo um país distante. E convém lutar contra isso.

Livro Amália

Amália, Ditadura e Revolução

De cantora do regime, a ostracizada pela revolução, esta é a história secreta de Amália Rodrigues, a voz maior e ícone incontornável do fado em Portugal. Uma investigação do jornalista Miguel Carvalho onde se contam as histórias que atravessaram a vida da fadista, na sua luta pela normalização do fado, até ao reconhecimento que lhe era legitimamente devido pela democracia.

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