Miguel Pinto
Miguel Pinto
12 Jun, 2023 - 16:54

Annie Silva Pais: a filha do chefe da PIDE que desertou para Cuba

Miguel Pinto

Há quem diga que Annie Silva Pais se perdeu de amores pelo Che Guevara. Criou um valente sarilho diplomático, tendo em conta de quem era filha.

Annie Silva Pais

A vida de Annie Silva Pais parece tirada da imaginação de um argumentista de cinema. Mas não é.

É a história verídica de uma mulher que largou uma vida faustosa e privilegiada por um amor impossível e por uma revolução com a qual, à partida, nada teria a ver.

Aqui cruzam-se a revolução cubana, Che Guevara, o Estado Novo português e um valente embaraço diplomático, que se tentou abafar o mais possível.

Afinal, Annie era a filha única de Fernando Silva Pais, o temido e poderoso diretor-geral da então polícia política portuguesa, a PIDE, e casada com um respeitado diplomata suíço. Ingredientes mais do que suficientes para um livro de ação e espionagem.

annie silva pais: nascida em berço de ouro

Nascida em Lisboa a 1 de dezembro de 1935 e batizada com o nome de Ana Maria Palhota da Silva Pais, acabou por ficar conhecida pelo petit nom de Annie.

A sua família pertencia à classe média-alta, pelo que passou toda a sua juventude longe das questões que assolavam politicamente o Portugal de então. Movia-se na alta sociedade, frequentava as festas e estava destinada a uma vida despreocupada e plena de conforto.

Com efeito, assim foi durante muito tempo. Annie era a filha de Fernando Silva Pais, que se viria a tornar no diretor-geral da temida polícia política do regime de António Oliveira Salazar, a PIDE.

O pai, com acesso privilegiado às mais altas esferas do poder, representava algo que Annie haveria de combater durante grande parte da sua vida. Mas já lá vamos.

Com este berço, nada mais natural que viesse a casar em conformidade. E assim fez, desposando o diplomata suíço Raymond Quendoz. Tudo normal, tudo perfeito, tudo o que se esperava de Annie.

No entanto, a vida de diplomata obriga a algum espírito de saltimbanco e Raymond Quendoz acabou colocado em Cuba, país onde chegou em 1962, acompanhado pela mulher. Nada mais seria igual.

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No meio da revolução

Cuba vivia a euforia da revolução. Os guerrilheiros da Sierra Maestra tinham ocupado o poder e o detestado Fulgêncio Batista já estava longe, no exílio. Annie viu-se submergida por toda a agitação que se vivia em Havana, tomou contacto com as teorias revolucionárias e, a pouco e pouco, foi mudando a sua percepção da realidade.

Como mulher de um diplomata, frequentava cerimónias e recepções onde os principais rostos da revolução cubana marcavam presença. Fidel Castro, obviamente, mas em especial Ernesto ‘Che’ Guevara, a quem Annie é apresentada e que elogia o vestido da bela portuguesa.

Consta que terá sido aí que Annie foi acometida por uma fulminante paixão pelo guerrilheiro de origem argentina, algo que iria formatar todo o seu futuro.

Assim, a vida de Annie Silva Pais dá uma volta de 180 graus, começando a avolumar-se os problemas no casamento com o diplomata suíço.

Até que após uma viagem ao México para alegadamente visitar uma amiga, Annie não sai do avião em Cuba, onde a esperava o marido, acabando por abandonar o aeroporto no carro do médico de Fidel castro. No fundo, desertava.

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annie silva pais: crise diplomática

Iniciou-se então uma nervosa crise política, com receios de que Annie Silva Pais tivesse transmitido segredos diplomáticos aos dirigentes cubanos (algo que nunca se comprovou) e o marido Raymond Quendoz a ser chamado de volta à Suíça onde seria interrogado de todas as formas e feitios.

Contudo, o epicentro da crise mudava-se para Lisboa. Fernando Silva Pais, o chefe da PIDE portuguesa, não queria acreditar no que ouvia e colocou o caso a Salazar, apresentando mesmo a sua demissão do cargo que ocupava.

Não foi aceite e Fernando, em conjunto com a mulher Armanda, procuraram, através dos canais diplomáticos, perceber o que se tinha passado com a sua preciosa filha única.

O que se tinha passado com a Annie Silva Pais é que tinha mergulhado na revolução cubana. Motivada por uma paixão platónica, mas avassaladora, por Che Guevara, começa a colaborar com os Comités de Defesa da Revolução.

Tornou-se uma revolucionária obsessiva e ia, aos poucos, cortando grande parte dos laços com Portugal e com a família.

25 de abril em Portugal

Entretanto, Portugal dava passos na direção da sua própria revolução, que acontece a 25 de abril de 1974. Fernando Silva Pais, ainda o chefe da PIDE, é um dos alvos a abater e acaba detido, acusado, entre outros crimes, do assassinato do General Humberto Delgado, processo ao qual não sobreviverá. Morre antes de ser emanada uma sentença.

Annie Silva Pais vem a Portugal, em 1975, mas para desgosto e choque da mãe, simpatiza com a revolução portuguesa e não condena os homens que tentam julgar o progenitor.

Trabalha ativamente na revolução portuguesa, como tradutora, e ainda terá tentado mover algumas influências para que o pai fosse libertado. Mas acaba por regressar à sua amada Cuba.

Cancro fatal

Foi trabalhar para a Equipa de Serviços de Tradutores e Intérpretes do regime cubano, até que em 1988 necessitou de uma operação de urgência a um nódulo na mama.

Ainda viajou mundo fora, ao serviço de Cuba, mas o cancro acabaria por levar de vencida a revolucionária Annie Silva Pais. Morreu a 13 de julho de 1989, sendo sepultada numa campa anónima num cemitério cubano.

Annie Silva Pais teve tudo, de tudo abdicou e viveu uma vida com que muita gente apenas sonha. Mais do que a paixão pelo Che Guevera, rendeu-se de forma incondicional aos ideais da revolução. Ideais esses a que ficaria fiel até ao fim. Hasta la vitoria, siempre, diria ela.

Fontes

A Filha Rebelde – José Pedro Castanheira e Valdemar Cruz (Temas & Debates)

Annie, uma portuguesa na revolução cubana – José Fernandes Fafe (D. Quixote)

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