Miguel Pinto
Miguel Pinto
26 Mar, 2021 - 16:18

Auto de fé: inquisição em Portugal foi abolida há 200 anos

Miguel Pinto

A inquisição foi abolida em Portugal a 31 de março de 1821. Pelo caminho ficou uma história de perseguições religiosas e muitas mortes e degredos.

Inquisição em Portugal

É muito provavelmente uma das páginas mais negras da Igreja Católica. Por entre acusações forçadas, culpas inexistentes, torcionários famosos, tribunais e autos de fé, foi um movimento dito purificador, destinado a punir a heresia e a manter viva a fé. A Inquisição em Portugal foi extinta a 31 de março de 1821, há precisamente 200 anos.

No entanto, para trás há quase três séculos em que a instituição esteve bem viva no nosso país. As galés, os trabalhos forçados ou os açoitamentos eram apenas algumas das sentenças do inquisidores, que podiam chegar à pena de morte pelo fogo ou pelo garrote. Não foi tão sanguinária como a espanhola (liderada pelo infame Tomás de Torquemada), mas inspirou o terror e foi braço armado para reis e bispos de então.

Inquisição: processo arrastado

As origens da inquisição em Portugal podem fixar-se no reinado de D. Manuel I. Em 1515, o monarca solicitava ao papa autorização para a instalação de um tribunal do Santo Ofício. Não que o rei português fosse particularmente religioso. Contudo, a sua segunda mulher, Maria de Aragão, exigiu como condição para o casamento que Portugal expulsasse todos os judeus do reino, acabando muitos deles por ser convertidos à força. Eram os cristãos-novos.

D. Manuel I foi arrastando os pés quanto ao estabelecimento da Inquisição em Portugal. Se por um lado queria agradar à noiva (irmã da sua falecida mulher), por outro necessitava dos investimentos financeiros dos judeus, tentando encontrar um sistema que equilibrasse estas duas faces da mesma moeda. Esta periclitante política acabaria por descambar no massacre de Lisboa, em 1506, onde centenas de cristãos-novos foram assassinados. D. Manuel puniu os responsáveis e repôs alguns direitos da comunidade judaica.

Por causa disso, a poderosa Inquisição Espanhola começou a questionar a fé de do rei português, que se dizia católico, mas dava abrigo aos judeus. D. Manuel assustou-se, tornou-se mais severo, mas só no final do verão de 1515 é que se decide a pedir a instalação da Inquisição em Portugal. Tudo numa altura em que o império português além-mar está cada vez mais consolidado. O génio diplomático do rei português não cessava de espantar.

Pintura de auto de fé em Lisboa
Auto de Fé em Lisboa, durante a acção da inquisição em Portugal

Inquisição: a confirmação de D. João III

Com a morte de D. Manuel I, em 1521, subiu ao trono D. João III, sendo aqui que a inquisição começa a fazer verdadeiramente o seu caminho em Portugal. Se no início o monarca renovou os privilégios dos cristão-novos e até lhes concedeu, em 1524, liberdade para abandonarem o país, brevemente tudo se iria alterar.

Em 1531, Portugal era sacudido por um violento sismo (que alguns cientistas acreditam estar próximo em intensidade com o de 1755) e a população atribui as culpas do sucedido a quem? Aos cristãos-novos, ou antigos judeus, claro está. Assim, e com a igreja a manobrar na sombra, em especial pelo inquisidor geral Alonso Manrique de Lara, D. João III pede a instauração definitiva do Santo Ofício em Portugal, com uma estrutura análoga ao espanhol.

Em dezembro de 1531, um bula do papa Clemente VII confirmava a instalação da inquisição em Portugal. Contudo, as muitas resistências na corte nacional levaram a que se iniciasse um intrincado problema diplomático que demoraria cinco anos a resolver. Só a 23 de maio de 1536, por ordem do papa Paulo III, e a bula Cum ad nihil magis, era definitivamente instituída a inquisição no reino português.

Entretanto, D. João III ia-se tornando cada vez mais religioso (ficou para a história com o cognome de Piedoso…) e a inquisição servia na perfeição alguns dos seus propósitos, assumindo-se como um tribunal simultaneamente régio e eclesiástico, ideal para a política centralizadora do poder que o monarca perseguia.

Funcionamento

Os membros do tribunal estavam ligados à igreja, só que todo o o funcionamento estava controlado pelo rei, desde a nomeação dos inquisidores gerais (que despachavam diretamente com D. João III), até à execução das penas de morte. Portugal contou, num primeiro instante, com seis tribunais, em Évora, Tomar, Lisboa, Coimbra, Lamego e Porto, mas estes três últimos tiveram vida efémera. A inquisição aceitava denúncias de todas as formas e feitios (mesmo com base em palpites ou prestações) e as confissões sob tortura eram o pão nosso de cada dia.

Regendo-se pelas normas da intolerante inquisição espanhola, o Santo Ofício português (que também chegou às ilhas do Atlântico, ao Brasil e até a Goa) tinha formas de punição severas, sendo que entre as acusações mais presentes nas listagens de autos de fé contam-se o cripto-judaísmo, delinquência contra a moral católica, sodomia, feitiçaria, blasfémia e bigamia. O primeiro auto de fé (morte pelo fogo) aconteceu em Lisboa a 26 de setembro de 1540. O último, a 21 de setembro de 1761, vitimando o jesuíta Gabriel Malagrida.

Não obstante a violência com que actuava, a inquisição em Portugal contou com muitos adversários. O processo nunca foi muito bem digerido pela nobreza, embrenhada que estava nas oportunidades de enriquecer além-mar (fruto dos descobrimentos) e que ia dando origem a uma sociedade miscigenada e com diferentes backgrounds religiosos. Mesmo dentro da fé católica, homens como o padre António Vieira assumiram posições contrárias à inquisição, pagando a afronta com penas de prisão mais ou menos longas.

O princípio do fim

Até que chegou o pragmático Sebastião José de Carvalho e Mello. Mais conhecido como Marquês de Pombal, manifestou-se contra os métodos do Santo Ofício, classificando-os como atos contra a humanidade e os princípios cristão. Isto mesmo tendo em conta que o seu irmão dirigiu a inquisição entre 1760 e 1770 e que o próprio Marquês usou a inquisição para se ver livre de alguns incómodos jesuítas.

No entanto, as leis pombalinas aboliram a distinção entre cristão novos e cristãos velhos, acabando por equiparar a inquisição aos restantes tribunais régios. Foi um duro, e definitivo, golpe na instituição, que começava aí a definhar e a perder importância e influência, acabando por ser definitivamente extinta a 31 de março de 1821, por decreto das Cortes Gerais Constituintes. Assim, o único vestígio da inquisição portuguesa repousa no Arquivo nacional Torre do Tombo. São mais de 35 mil processos de uma das páginas mais negras do homem em nome da fé.

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