Isadora Freitas
Isadora Freitas
24 Nov, 2017 - 08:31

Postais do Camboja: o arroz e as nossas noções de anatomia

Isadora Freitas

Corações maiores do que tudo o resto, foi o que encontrei nos campos de arroz de Kok Dong. Pessoas com um Presente duro mas feliz.

Postais do Camboja: o arroz e as nossas noções de anatomia

Querida D.,

como estão as coisas por terras de moliceiros?

Fez já um mês que aterrei em solo Khmer e continuo a sentir que todos os dias desperto para uma novidade. É um mundo “composto de mudança”, em que as certezas são poucas mas felizes. Uma são as pessoas. A certeza de que haverá sempre um sorriso à espera e uma vontade imensa de partilhar o que há de único por aqui.

No sábado, fugi à cidade rumo a Kok Dong, uma pequena aldeia não muito longe de Siem Reap onde os campos de arroz preenchem toda a paisagem. Fui com duas amigas, a Daria e a Pauline, para uma experiência de cultivo de arroz com uma família local, promovida pela Backstreet Academy.

Lá, fomos recebidas pelo Sophean, que nos levou a experimentar os vários instrumentos utilizados pela comunidade para processar o arroz. A verdade é que nunca me pus realmente a pensar no trabalho que está por trás de um prato de ‘fried rice’. Agora sei. Sei que há quem trabalhe horas e horas para colocar o arroz, como o conhecemos, na mesa.

Com alguma falta de força e coordenação mas com o espírito carregado de vontade, abraçámos o desafio de separar os grãos da casca, de bater o arroz e, até, de o colher. De chapéus na cabeça e pés descalços, seguimos o Sophean até aos campos de arroz, onde a água nos dava, por vezes, pelos joelhos.

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Confesso que é uma sensação estranha – caminhar sem saber o que pode estar a querer cumprimentar os dedos dos pés – mas acaba por se entranhar e, uma vez de foice na mão, qualquer receio desaparece. Segui, com cuidado, os conselhos de quem faz isto todos os dias e pus mãos à obra com grande entusiasmo.

Pelo canto do olho, conseguia ver duas Cambojanas de sorriso imenso a ceifar a uma velocidade inacreditável. Perguntei quanto tempo levaria a colher todo aquele arroz. Responderam, humildes, “um dia”. Um só dia. Eu, a Daria e a Pauline sorrimos. Nós levaríamos um mês.

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Seguimos, depois, caminho até a um pequeno lago, onde o Sophean lançou a sua rede na esperança de apanhar peixe para o almoço. Foram várias as tentativas até que, finalmente, três ou quatro caranguejos se viram forçados a rumar connosco à aldeia. Pela estrada, vimos uma mina já desactivada, pequenos pescadores de armadilhas feitas e o balão de ar quente de Angkor a dizer olá às nuvens.

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Chegámos em pouco tempo à escola que o Sophean fundou em 2014, onde mais de trezentas crianças têm aulas de Inglês todos os dias. Chama-se Building Future Opportunities Kbalromeas (BFOK) e é um espaço cheio de cor, em que as salas, abertas para o exterior, foram construídas por voluntários de outros cantos do mundo. Foi lá que comemos, à sombra, um bom prato do que aqui se come – arroz, pequenos peixes do lago, omeletes e vegetais.

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Há seres humanos incríveis neste planeta. Seres que apertam a mão de todos os vizinhos, sabem o nome de todos os pequenos que correm pela estrada de terra batida, abrem a porta de casa a desconhecidos com cabelos de cor estranha. Pessoas com corações maiores do que qualquer outra parte do corpo; pessoas que provam que o pintor de metáforas, Afonso Cruz, tem razão ao dizer que “as nossas noções de anatomia estão todas erradas”.

Sei que saberias pôr tudo isto em mil desenhos de encantar. Sei que irias adorar as cores serenas destas paisagens que, ao sol, brilham como se pintadas de fresco. Tenho saudades tuas e desse teu jeito de artista.

Espero-te bem e envolvida em projectos inspirados, como sempre te conheci.

Um abraço imenso e um até já, ao som de Xavier Rudd.

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