Ricardo Braz Frade
Ricardo Braz Frade
06 Mar, 2018 - 14:20

O xisto, a cabra e a chanfana

Ricardo Braz Frade

Poucas coisas dizem mais acerca de um povo do que a sua gastronomia. No coração do Xisto, a cabra e a chanfana aquecem a alma nos dias mais rigorosos.

O xisto, a cabra e a chanfana

As gentes da Beira, nomeadamente da Beira serrana – que está longe de tudo, elevando-se a uma altitude que põe os solos à mercê do vento e do frio – souberam, como poucos, dar bom uso a um dos verbos mais portugueses que o nosso léxico inventou: o de desenrascar.

A solidão das aldeias do xisto obrigava a uma superação, a uma vitória colectiva sobre a pobreza fértil daquelas terras altas. Juntos, os aldeões partilhavam o clima severo e a fome.

A cabra como sustento

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Apesar das ovelhas e dos carneiros serem visitantes comuns nas transumâncias da Lousã, para onde vinham pastar nos meses de calor – e mais tarde levadas para as planícies quando o gelo tomava conta da serra –, foi a cabra o alimento maior destes ermos.

A cabra e o beirão tiveram desde tempos idos uma relação íntima, familiar, porque ambos partilhavam uma certa adaptabilidade à dureza da montanha. Quando nova, a cabra dava leite e queijo. Quando velha, sem condições para gerar cabritos que se somassem aos rebanhos, era morta e usada a sua carne para refeições de excepção.

Foi assim que a chanfana, ex-libris dos comeres do concelho da Lousã e de Góis, surgiu. Um tacho apinhado de postas, escurecidas pelo vermelho do vinho, com um profundo sabor da terra.

O milagre da Chanfana

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Hoje, felizmente, uma visita às povoações xistosas beirãs, são um regresso saudável a esse passado austero, onde podemos viver o que outros viveram, mas sem experienciar a escassez de outros tempos.

Regressar à carne de cabra velha, servida em abundância numa caçarola de barro preto, é um momento de um hedonismo que chega a parecer pecado, de desejo autêntico de partilha com quem, naquele instante, tem a sorte de estar ao nosso lado.

Esse é o milagre da Chanfana: um prato que tinha tudo para correr mal mas que, por todos os anos de optimização que sofreu, se tornou um primor para os estômagos mais afoitos.

São postas entregues aos caprichos do azeite, do toucinho, da cebola, da salsa, do alho, do sal, do alecrim ou, consoante as opiniões, do colorau e do chá de pimenta. Tudo em combustão num forno de pão. Tudo bem regado com o vinho possível que esta terra dá. Tudo ternamente amontoado numa caçoila redonda, de barro grosso, pontuada com batata cozida.

Comer um prato destes, sem a habitual pressa moderna das cidades, e sempre na companhia certa, torna-se uma ocasião solene, de preenchimento de qualquer coisa que nem sabíamos estar por preencher. Como se se tratasse de uma religião.

Espreite o Restaurante Museu da Chanfana, em Miranda do Corvo. Ver restaurante>>

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