Isadora Freitas
Isadora Freitas
23 Fev, 2018 - 13:00

Postais do Camboja: pela Estrada Fora até Battambang

Isadora Freitas

Battambang é uma cidade de edifícios cansados mas bonitos, campos verdes e gentes simpáticas que faz despertar uma certa pressa de viver.

Postais do Camboja: pela Estrada Fora até Battambang

Querida Y.,

Escrevo-te, com saudades desse teu jeito de quem não tem medo de passear à chuva, sobre os meus dias numa província vizinha.

Tinha tudo para ser uma sexta-feira como tantas outras, terminada com uma cerveja na Soul Kitchen a ouvir o genérico de Narcos cantado ao vivo e Bob Marley na guitarra. Porém, conheci, nestes últimos tempos, seres que ardem com a pressa de querer conhecer e explorar o não explorado. Pressa que, com os quatro meses que já colecciono em solo Khmer, me esqueci de ter.

Partimos ao final da tarde rumo a Battambang – nove pessoas de seis países diferentes num autocarro cor-de-rosa em que o ar condicionado fazia esquecer o calor do sol de Janeiro lá fora. Um autocarro que percorreu, em quatro horas, os setenta e sete quilómetros que separam Siem Reap e a pequena cidade de Battambang. Chegámos já com o céu escuro, de estrelas tímidas, a um hostel onde dormimos em colchões pousados no chão com o despertador colocado para as sete horas.

Com o corpo já mergulhado na rotina de madrugar, também em Battambang, a um Sábado, despertei antes do sol o fazer e parti para a velha casa de Ayemenem, Índia, nas palavras de Arundhati Roy, em “The God of Small Things”. Livro que, como celebração das Pequenas Coisas, surgiu, por acaso, na prateleira de um pequeno café no centro quando procurava um para trocar pelo “The Tale of Two Cities“, de Charles Dickens.

Depois de um café quente e uma tigela infeliz de aveia com leite, fomos de tuktuk até à pequena sede da Butterfly Tours, uma empresa de turismo criada por estudantes locais. À entrada, esperavam-nos nove bicicletas com campainhas coloridas e chapéus de palha colocados nos cestos. Partimos uns atrás dos outros, primeiro pela cidade, depois pelo silêncio do campo.

placeholder-1x1

A primeira paragem foi na casa de uma família que faz fornos de barro, onde diferentes gerações se unem à volta desta arte, pesada e, ainda assim, tão frágil. Uma casa que é toda jardim e em que todo o jardim é barro. Naquele sol de meio da manhã, vimos dois irmãos, de mãos calejadas e corpo e alma cobertos de matéria prima, a mergulhar o molde em cinzas e a fazer rodar o barro no seu interior, para depois deixar secar durante dias. Forno após forno. Duzentos fornos por dia.

placeholder-1x1
placeholder-1x1

Pedalámos por entre florestas e campos de arroz, petiscámos pequeno doces tradicionais à beira da estrada, visitámos um templo onde pequenos monges descansavam à sombra, intrigados com a nossa estranha presença. Já sob o sol do meio-dia, entrámos numa pequena estufa de cogumelos, onde tudo era intenso – o cheiro, o calor, a vontade de voltar ao ar fresco do campo – e regressámos por uma estrada sem fim à vista, com o vento a cumprimentar as nossas caras cansadas e felizes.

placeholder-1x1
placeholder-1x1
placeholder-1x1

Sábado, rumámos ainda a Phnom Sampeau, uma montanha para lá dos campos de arroz, onde o Khmer Rouge imprimiu na chamada Killing Cave o terror da sua não-Humanidade. Em silêncio, ainda mergulhados no passado escuro desse sítio onde os arrepios se agarram à pele, espreitámos a vista e dissemos olá aos macacos quando o sol se preparava já para dizer adeus. No sopé da montanha, o anoitecer foi celebrado com o voo dos morcegos, que, ao escaparem da cave em busca de comida, enchem os céus e fazem chover.

placeholder-1x1
placeholder-1x1
placeholder-1x1

Battambang é a quarta maior cidade do Camboja, mas tem um quê de cidade pequena, familiar. Os edifícios, que fazem recuar aos tempos coloniais, parecem cansados, deixados ao vento, não tristes, porém. Apenas cheios de História e as rugas que ela traz consigo. São pequenos armazéns de memória, ladeados por janelas altas, algumas fechadas para sempre, e longas varandas, onde o burburinho da cidade se senta todos os dias à mesa. É uma cidade que, sem pressa nos seus afazeres no mercado ou nos cafés, me faz sentir pressa de viver e desejar tudo ao mesmo tempo. Não bocejar mas arder, como as pessoas autênticas do Universo de Kerouac.

Sim, tinha tudo para ser uma sexta-feira como todas as outras. Mas, levaram-me a fazer-me à estrada. E ainda bem.

Espero-te bem, Y., com a energia que faz de ti esse ser de Sol.

Até já, com a esperança feliz de te poder ver quando estiver de regresso ao ninho.