Miguel Pinto
Miguel Pinto
11 Jul, 2025 - 17:00

Entre margens e lendas: um refúgio chamado Janeiro de Cima

Miguel Pinto

Estas férias, se estiver pelos lados do Zêzere, dê um salto à aldeia de Janeiro de Cima. Não vai dar o seu tempo por perdido.

praia de janeiro de cima

“Ó da barca”, gritava-se antigamente para atravessar aquela parte do rio. Alguém ouvia o chamamento e lançava-se às águas. Onde? Nas margens serenas do rio Zêzere, junto à aldeia de Janeiro de Cima.

Esta aldeia de xisto, pertencente ao concelho do Fundão, é um daqueles lugares raros onde a vida corre mais devagar, onde cada pedra parece saber segredos antigos e onde o rio murmura lendas de tempos distantes.

Chegar a Janeiro de Cima é como abrir um livro escrito em lousa e seixos. As casas, alinhadas em harmoniosa desordem, exibem orgulhosamente as texturas do xisto e do quartzo, dois materiais que o tempo e o engenho humano aprenderam a combinar como quem borda um casaco de inverno com linha de sol.

Caminhar pelas ruas estreitas da aldeia é um exercício de encantamento e os detalhes estão em todo o lado, seja nas portas pequenas, nas flores que escapam das janelas ou nos telhados que parecem tocar o céu.

Janeiro de Cima: história e lendas

A história deste lugar começa a desenhar-se, com traço ténue mas firme, já no século XV. Em mapas do início do século XVI, Janeiro de Cima já surgia marcada como ponto de vida e de encontro.

Diz-se que nasceu de uma divisão familiar, como tantas histórias portuguesas, entre dois irmãos de nome Januário. Um ficou na margem de cima do Zêzere, o outro na de baixo. Daí, Janeiro de Cima e Janeiro de Baixo.

Mas a aldeia cresceu para além da lenda, com uma identidade própria, feita de esforço agrícola, de tradições tecidas à mão e de uma relação íntima com o rio.

vista geral de janeiro de cima

Parque fluvial

E é precisamente o rio Zêzere que continua a ser o fio condutor da vida em Janeiro de Cima. Aqui, o Parque Fluvial da Lavandeira é mais do que um espaço de lazer. É um cenário onde o passado e o presente convivem em harmonia.

No verão, as águas convidam a mergulhos demorados, as margens acolhem piqueniques em família e o céu reflete-se nos olhos de quem ali reencontra um certo sossego. E voltamos à barca. Uma embarcação tradicional que cruza o rio e que, hoje como ontem, se chama com um grito: “Ó da barca!”. Um gesto que é ritual, que une margens, que liga tempos.

Outro símbolo incontornável da alma de Janeiro de Cima é a Casa das Tecedeiras. A tradição do linho, que em tempos foi motor económico e identidade visual, renasce aqui com força.

Dentro das paredes da Casa, o som dos teares é como música antiga, um ritmo quase esquecido que regressa com força, com orgulho e com modernidade. As mãos das artesãs, movendo os fios com sabedoria, são guardiãs de um saber que não se quer perder.

Trilhos a explorar

Para quem deseja explorar mais além, a região é generosa em experiências. Os trilhos da Grande Rota do Zêzere serpenteiam por entre pinhais, socalcos e paisagens de cortar a respiração.

Há passadiços, caminhos de terra batida, miradouros secretos, e até vestígios de antigas explorações mineiras. A Garganta do Zêzere, perto da Malhada Velha, oferece um espectáculo geológico com 600 milhões de anos, um corte profundo na serra, esculpido pela persistência da água e do tempo.

E depois há os sabores. No restaurante O Fiado, no centro da aldeia, servem-se pratos que nos prendem à mesa com a simplicidade e a riqueza da cozinha beirã: maranhos, cabrito no forno, bacalhau com broa, sempre acompanhados por um vinho da região e a hospitalidade desarmante dos locais.

Barca em Janeiro de Cima

Turismo rural

Ficar por Janeiro de Cima é prolongar o encanto. As casas de turismo rural, como a Casa Cova do Barro ou a Casa da Ti Adélia, oferecem mais do que estadia: oferecem pertença.

A arquitetura em xisto mantém-se, mas por dentro há conforto, cuidado e uma luz quente que convida ao descanso. É fácil adormecer ao som do vento a atravessar os pinheiros e acordar com o aroma do pão acabado de cozer.

Janeiro de Cima não se visita com pressa. Aqui não há monumentos imponentes nem filas de turistas. O que há é um património vivo, feito de gente, de silêncio, de gestos repetidos com ternura e de uma beleza que não precisa de gritar para se fazer notar.

É um destino que nos pede presença, que nos oferece tempo e que nos lembra que há aldeias onde ainda se vive como se o mundo lá fora fosse apenas um eco distante.

Se for, vá com tempo. E leve o coração aberto.

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