Share the post "Trancoso: aldeia histórica entre muralhas e lendas na Beira Alta"
No topo de um planalto da Beira Alta, rodeada por muralhas medievais quase intactas e vigiada por um castelo milenar, a aldeia histórica de Trancoso é daquelas localidades que não vivem apenas de fotografia bonita.
Aqui cruzam-se fronteiras antigas, batalhas decisivas, lendas religiosas, memória judaica, feiras tradicionais e um quotidiano ainda marcado pelo ritmo do interior.
Trancoso é, tecnicamente, cidade. Mas dentro das muralhas continua a ter a escala e a alma de aldeia histórica, com ruas estreitas, casas de pedra, pelourinho, igrejas, portas fortificadas, tudo muito concentrado e fácil de percorrer a pé.
Para quem gosta de escapadinhas com história, gastronomia e aquele ar de tempo suspenso, é um pequeno vício.
Centro histórico de Trancoso: entre muralhas e castelo
O coração de Trancoso vive dentro da cintura amuralhada. A melhor forma de entrar é pela Porta d’El Rei, um arco monumental flanqueado por torres, que serve de cartão de visita à vila medieval.
Deste ponto, o centro histórico abre-se em ruas de pedra, largos e perspetivas sucessivas sobre o castelo e o casario.
O Castelo de Trancoso, com origem anterior à própria nacionalidade, é o grande protagonista. Fundado entre os séculos VIII e IX, reforçado ao longo da Idade Média, guarda memórias da Batalha de Trancoso, em 1385, em que as forças portuguesas derrotaram os castelhanos, pouco antes de Aljubarrota.
Subir à torre de menagem é quase obrigatório: lá de cima vê-se o centro muralhado, o planalto beirão e, em dias limpos, a linha distante da Serra da Estrela e o vale do Douro.
Dentro das muralhas, a praça Dom Dinis funciona como sala de estar da aldeia histórica. Aí concentram-se o Pelourinho manuelino, a Igreja de São Pedro, as antigas casas da Câmara e o Palácio Ducal (na verdade residência de viscondes).
A estátua do sapateiro-profeta Bandarra, figura maior da memória local, relembra o lado mais enigmático e quase literário de Trancoso.

Trancoso a pé: ruas, judiaria e casas senhoriais
Este é um local é para ser percorrido devagar. A Rua da Corredoura, antiga artéria comercial, continua cheia de vida, com casas brasonadas, varandas em granito e fachadas trabalhadas.
Ali se destaca a Casa dos Arcos, com o alpendre usado durante séculos para atividades de mercado.
Na Rua dos Cavaleiros surgem solares como a Casa das Oliveiras ou o Solar dos Sousa, a lembrar que a vila teve peso económico e social bem acima da sua dimensão atual.
Uma das zonas mais interessantes é a antiga judiaria. Nas vielas em redor da Rua do Poço do Mestre mantêm-se portais biselados, inscrições e elementos arquitetónicos ligados à comunidade sefardita que aqui viveu.
O Centro de Interpretação da Cultura Judaica Isaac Cardoso ajuda a contextualizar essa presença, cruzando história, religião e perseguição, num território onde a Inquisição deixou marcas profundas.
Ainda na mesma área, a Casa do Bandarra e o Poço do Mestre acrescentam outra camada narrativa à visita, através de profecias, trovas, lendas e um imaginário que inspirou desde o sebastianismo ao Padre António Vieira, chegando até Fernando Pessoa.

Igrejas, lendas e símbolos de fé
Trancoso gosta de misturar história oficial com histórias contadas à lareira. A Igreja de Nossa Senhora da Fresta, por exemplo, está ligada à lenda de Iberusa Leoa, a jovem cristã que terá sido poupada durante um cerco, após pedir proteção à Virgem, prometendo construir uma capela no local.
O templo, fundado no século XII, preserva elementos românico-góticos, como os portais laterais e o arco triunfal decorado com arabescos e meias-esferas, além de frescos dos séculos XV e XVI.
Na própria praça Dom Dinis, a Igreja de São Pedro guarda o túmulo de Bandarra, reforçando a ligação entre fé, profecia e identidade local. Outras igrejas e capelas, como a Misericórdia, Santa Maria de Guimarães ou São Marcos (ligada ao local da Batalha de Trancoso), completam um percurso que é tanto arquitetónico como emocional.
No rasto das portas da muralha
A Porta d’El Rei e as Portas do Prado são as mais monumentais, ligando o burgo ao exterior em direções diferentes. A Porta do Carvalho exibe em relevo uma figura equestre que muitos associam ao cavaleiro João Tição, protagonista de mais uma lenda local.
A Porta da Traição e as Portas do Sol ficam mais próximas da cerca do castelo, num registo claramente defensivo.
E depois há o Postigo do Boeirinho, estreito ao ponto de obrigar a passar um de cada vez, pensado para ser a última via de entrada em caso de invasão. Hoje serve, no mínimo, para testar equilíbrio, paciência e capacidade de encaixe em pedra medieval.
Trancoso: o que ver na região envolvente
Uma escapadinha a Trancoso ganha outra dimensão se for combinada com explorações pela Beira Interior. Em pouco tempo de carro, surgem cenários bem diferentes, mas que dialogam com a mesma identidade.
Os Passadiços do Távora, em Sernancelhe, seguem as margens da albufeira da Barragem do Vilar, num percurso fácil e fotogénico, ideal para quem quer alternar muralhas com natureza.
Penedono, com o seu castelo triangular e cenário quase de fantasia, é outro clássico da região.
Mais longe um pouco, mas ainda em lógica de circuito, estão Mêda e a aldeia histórica de Marialva, tudo bem encaixado numa roadtrip pela Beira Interior, tendo Trancoso como base ou ponto central.
Como lá chegar
Vindo do Porto segue-se pela A1 até Aveiro, apanha-se a A25 em direção a Viseu e, já perto de Celorico da Beira, a saída que aponta para Trancoso. O percurso faz-se bem, é rápido e ganha um ar mais rural nos últimos quilómetros, quando a estrada começa a serpentear pelo planalto.
Para quem vem de Lisboa, a viagem é mais longa. A rota mais prática é subir pela A1 até Coimbra, entrar na A35/A13 e depois derivar para a A25 rumo a Viseu e Guarda. O resto é na mesma sair antes de Celorico da Beira e seguir as placas até Trancoso.